Storytelling - Kineli
Do interior da sala vinha um cheiro delicioso a arroz de peixe, talvez com algum marisco, temperado com coentros. Mas Kineli ignorava-o. Sentado no parapeito da janela de ninguém, observava o tempo a passar diante de si. Ora roncando a motor, ou trotando a correr, os bichos que passavam mostravam que a vida passava, e que alguém a vivia. Indiferente, ele deixava que o tempo para si significasse alguns raios de Sol passando por entre os prédios e que cada dia fosse uma janela, nem sempre na mesma rua.
Um gato, outro gato... tantos mais.
Ignorava-os, observando esses infelizes animais. Pobres, medíocres e arrogantes; fartara-se já de os ouvir comentar sobre suas orelhas, um pouco maiores que as habituais. Kineli não se sentia um gato... vivia como um e ignorava tudo como um, porém sentia em si algo mais. Farto de ouvir risos e olhares de gozo, trepou agilmente pelas varandas, em direcção ao Sol.
Observando as janelas enquanto saltava, admirava cada bicho que lá por dentro andava, cada um diferente do outro, sem saber o que os diferenciava; chegado ao topo, observou aquilo a que se chama, na cidade, ao silêncio: apenas ouvindo o eco de fundo do barulho das ruas, que trepava pelas paredes até lá acima, onde mais ninguém estava. Dali, tudo parecia tão pequeno e miserável: do seu posto grandioso, os gatos lá na rua pareciam míseros ratos correndo em silêncio.
O Sol recebeu-o, nunca gozara com ele, e Kineli sentou-se sobre uma chaminé, absorvendo a luz.
As horas foram passando, o Sol foi voando, e a sua luz foi crescendo dentro desse mais-que-gato que a engolia. Sem nunca piscar os olhos, Kineli sentiu-se crescer, até que o Sol de fim de dia se extinguiu todo para dentro de si... Agora estava pronto.
Com saltos longos e pesados, desceu até à rua, estalando as varandas por onde passava. Sabia onde encontá-los... no beco ao fundo da Rua Neves Ferreira, pelo meio dos caixotes e pilhagens, sabia onde os gatos se encontravam noite após noite, bebendo e drogando.
Transformado em sombra, Kineli aproximou-se do beco, lançando-se sobre os gatos, tingindo tudo de preto excepto seus olhos assustados. Os que dormiam de alcool congelaram de terror e continuaram a dormir; os restantes miaram com um miar que mais soava a um relinchar... e fugiram. Em seu encalço, Kineli foi-se apoderando de suas vísceras, um a um: esmagava-os com uma pata, dilacerava com as garras, rugia até os bigodes dos gatos se espetarem na própria carne tal porcos-espinho auto-mutilados! Encostados a um canto sombrio, os gatos largavam todo o pelo de tanto tremer, mostrando o frágil e ingénuo corpo que arrastavam por baixo: Kineli ria-se com gargalhadas que ecoavam até ao céu, e perturbavam o calmo silêncio da noite citadina que ninguém ouvia acima dos prédios altos... Agora era ele grande, era ele que ria... ninguém podia fugir.
Estúpido, um dos gatos, disparado pelos seus excrementos, tenta-se salvar correndo, mas a incomensurável pata de Kineli deteve-o, e as próprias unhas lhe rugiram.
Então um raio de Lua furou por entre dois prédios e iluminou os olhos do condenado e suplicante felino. Outro raio de luar, e o beco purificou-se de branco... os olhos que choravam assustados não eram de gato, mas de rato: A sua cauda era lisa, não felpuda; e o seu corpo era pequeno, redondo e insignificante.
Apenas um rato... apenas tantos ratos. Libertou-os, pois sentiu que estava errado.
Na cidade banhada pelo Sol, e mergulhada na Lua, nunca mais se ouviu o miar de um gato, nem uma sombra felina voltou a passar nos becos. Havia apenas os ratos, que corriam lá em baixo na rua, e Kineli, postrado no topo de uma chaminé, envolto no silêncio citadino de fim de tarde, absorvendo o Sol como quem para sempre arde.
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